Vodafone Mexefest 2013
29 e 30 de Novembro
"Um desfibrilador de inverno"
Muitas lotações esgotadas. Sinal excelente: de que a malta anda sedenta de música. Sinal fraco: o de um festival com mais bilhetes do que capacidade. O fim-de-semana do Vodafone Mexefest, a 29 e 30 de novembro, foi de buliço ofegante entre a avenida da Liberdade e a rua das Portas de Santo Antão, em Lisboa. À sexta edição, o conceito permanece brutal: pôr o mundo a correr ruas para 14 salas, muitas delas espaços emblemáticos da capital. Entre paredes, os elogios vão para as Savages.
Dia 29 de Novembro:
Savages: punk de salto alto
Ouvir o álbum “Silence Yourself” em casa é uma experiência assustadoramente aquém de ver as Savages ao vivo. Porque o quarteto de Londres é isso mesmo: vivo, orgânico, forte no olhar, de uma feminilidade cortante e palavras que nos inflamam as ganas. Atitude punk. O Coliseu está cheio para assistir ao concerto das quatro miúdas vestidas de preto e o momento revela-se um espetáculo completo, desde o poderoso baixo manipulado por Ayse Hassan até às dádivas de silêncio protagonizadas por Jehnny Beth – perfeitamente equilibrada num salto alto que não é para todos.
À terceira faixa, já ninguém arreda pé da memória pós-punk sugada aos anárquicos anos 1970 de Manchester. Entramos num cenário em que a francesa Jehnny não deixa, por um segundo, pensar que não são dark days aquilo que vivemos. Ainda assim, olhamos para a guitarra de Gemma Thompson (que deu, em 2011, o nome à banda) e vemo-la azul celeste.
“I see some happy faces down here”, atira Jehnny, para se lançar de seguida num tom “orgásmico”, que deixa o público vibrante. As Savages já tinham atuado em Portugal este ano, no Primavera Sound, e já haviam surpreendido a crítica, em boa parte pela postura. Esta é uma banda que quer calar o digital para chamar a vida. No concerto de Seattle, em abril, as regras eram estas: “no Instagramming, no video, no tweets”. O quarteto de Londres não é nem quer ser pop – muito menos pop-up –, por isso, está-se a lixar para “instagrams”. “A música das Savages' situa-se fora do plano das tendências atuais”, escreveu a Pitchfork, classificando o grupo como “brutalmente austero”. E nós concordamos.
Estamos a meio do concerto e, lá atrás, na bateria, o rabo-de-cavalo de Fay Milton abana freneticamente. Das mãos de Gemma sai um riff que não nos larga o pé. O público pede mais e elas sabem desobedecer. Atitude punk. Respiram no silêncio, observam a multidão que ergue os braços na sala circular. “Don’t worry about breaking my heart, ‘cause you have no face”, canta Jehnny, grave. E na altura em que muitos começam a abandonar o Coliseu, a vocalista pergunta se querem mais. A resposta é um “tomem lá!”, sem respirar, pontuado por um baixo acelerado, curto e grosso. Jehnny sobe as grades e dá a mão ao público. Atitude punk.
O concerto culmina com “Don’t let the fuckers get you down”, música certa para tempos de crise. A plateia parece concordar com o mandamento das Savages: não deixemos que nos tirem a alma.
John Grant: lotação esgotada
Para quem chega a meio do concerto do norte-americano John Grant, um dos nomes fortes do cartaz, num Cinema São Jorge lotado, definir-lhe o género musical torna-se o enigma do ano. A balada ao estilo Elton John parece irritar o próprio músico, que decide saltar para as teclas e propor a um público bem coordenado a endiabrada “Pale Green Ghosts”, que oferece o título ao seu álbum mais recente, lançado este ano. O público aproveita para saltar das cadeiras e arrojar-se numa dança que nem o vocalista esperava. “Os portugueses são do caraças”, indagará Grant, enquanto pulsa o teclado e observa a transformação do espaço refinado numa pista de dança.
Mas rapidamente o ex-vocalista dos Czars volta ao seu registo cancioneiro, como quem diz ao público para se lembrar de onde está. As cadeiras do São Jorge regressam ao aconchego das melodias breves, algures entre a folk e a pop. O certo é que Grant, com o seu gorro descomprometido e ar da “street”, parece um tipo acessível, direto e sem grandes subterfúgios, o que o aproxima do público.
É notório: há um traço de raiva e outro de redenção em Grant. Se num minuto nos canta “I am the greatest motherfucker that you’re ever going to meet”, no outro, amolece-nos com “My love has constructed with his arms for me the safest place”. Diríamos que a inconstância de Grant passa da vida para a música. Sentimo-lo um pouco perdido, até. Ainda assim, o público pareceu gostar de se perder com ele.
Glasser, ou mesmo glacial
Suspeita-se que as temperaturas negativas que se fazem sentir na Dinamarca, terra-mãe de Glasser, aqueceriam mais do que os pouco mais de 20 espectadores deste concerto à boca da Estação Ferroviária do Rossio. Esta pop eletrónica e etérea merecia mais. Mais calor, mais público, mais entusiasmo. Ainda experimentamos os primeiros minutos de concerto e essa ausência de faísca já fomenta uma timidez castradora nos interstícios de Cameron Mesirow, confessora de alguma fragilidade no que toca à sua relação com o espaço público. No final, estamos perante um corpo retraído em ambiente glacial.
Os dois álbuns de Glasser, “Ring” (considerado um dos melhores de 2010) e “Interiors”, têm deambulado entre reflexões à volta do mundo dos sonhos e da relação com o exterior. Ritmicamente, as canções recorrem ao minimalismo e à repetição, como se tratassem as obsessões mais íntimas da vocalista. Globalmente, a música é difícil de categorizar. Desagua num terreno sem fronteiras, poroso e respirado por uma percussão inflexível e uma voz licorosa.
É curioso que o nome Glasser nos transporte para um universo de vidro, delicado e transparente como a voz de Cameron. Mas, na verdade, trata-se da senha dinamarquesa para dizer “óculos”. A isto respondemos que Glasser obriga-nos a observá-la mais de perto, de uma próxima vez.
Woodkid: Sensacional aka Sensacionalista
Não se trata de consenso, mas de opinião: Woodkid é um fenómeno bem menos áudio do que visual. Yoann Lemoine tornou-se rapidamente um sucesso incontestável do mundo da música – e isso di-lo um coliseu bem cheio, de pulso ansioso pelas primeiras notas – mas a sua praia ( e a sua origem) é o vídeo. Foi, aliás, como realizador de clips para Lana del Rey, Katy Perry ou Rihanna que o francês se destacou no mundo do espetáculo.
Ainda se faz a entrada no palco do Coliseu e Woodkid já ganhou o público português. Os primeiros 30 segundos são uma plateia rendida ao tom épico do músico de guarda-roupa hip-hop. O espetáculo é imponente, torna os observadores atentos, e o jogo de luzes é uma orquestra afinada e utilizada ao detalhe pelo protagonista. O pano de fundo, sempre em movimento, toca o cinema fantástico. Com Woodkid, tudo é em grande: não vemos colinas mas montanhas; não vemos capelas mas catedrais; não ouvimos coros mas orquestras. As luzes seguem sempre para cima e os braços erguem-se ao alto, pelo que o público não tem como ficar no chão.
Aos dez minutos, a audiência está pasmada. Assiste-se ao impensável e não se questiona: se há dois putos no palco em fatos hip-hop a tocar trompete, é porque hoje, tudo se mistura. Se bem que não vimos qualquer fusão. “Woodkid sabe como dar um espetáculo, mas não há sangue nas suas músicas”, criticou o The Guardian e nós assinamos por baixo. Mas o público, esse, dá-lhe o sangue que for preciso.
Dia 30 de Novembro:
Daughter: filhos de uma geração
Por vezes, uma banda concentra-se no vocalista e é um pouco isto que acontece aos Daughter. A voz de Elena Tonra é como a blusa que veste: de seda. A vocalista seduz-nos com leveza e elegância, na sua timidez adolescente. Ainda assim, como equipa, os londrinos equilibram-se bem, com a guitarra de Igor Haefeli e a bateria de Remi Aguilella.
Neste indie-pop-rock, as canções são sensuais e emocionais. E se a voz de Elena nos põe o coração doce, a percussão de Remi vai aos membros para nos fazer dançar. Na segunda noite do Vodafone Mexefest, os Daughter protagonizam um concerto certinho, sem falhas, sintoma de um grupo que dá os primeiros passos na música a apalpar terreno.
Trata-se da estreia da banda inglesa em Portugal, pelo que o coletivo mostra-se surpreso com um público português conhecedor das suas letras e variâncias rítmicas. A terceira faixa, “Love”, confirma que os Daughter fazem música cardíaca, de batimentos bem coordenados com as luzes. A guitarra elétrica toca-se com o arco, a bateria assume a linha da frente e já mais para o fim do concerto, quando o amor ganha protagonismo absoluto, voltam-se os isqueiros para o ar e as letras são seguidas sem cábula. Nos intervalos, Elena solta um riso nervoso e terno, presa a uma insegurança postural que, curiosamente, assenta bem ao trio.
Com este concerto, Daughter afirma-se entre a juventude vivaça do festival; não há dúvida. E se voltarem para o ano a Portugal, arriscamos uma casa novamente cheia.
Erlend Øye: a estrela foi o público
Loirinho, branquinho e de calças cor de salmão, o par de Eirik Bøe nos Kings of Convenience veio a Lisboa tocar música para meninos. E meninas. Como é hábito, aliás. O objetivo de Erlend Øye é não deixar que ninguém se aproxime da rebeldia da adolescência ou da escuridão da idade adulta, para apreciar esse amor de infância que o compositor norueguês deposita nas suas canções. À espera de Øye está um Cinema São Jorge lotado, desde cedo, mostrando que, também na prática, este é um dos grandes nomes do cartaz.
Modéstia, simplicidade, bom humor e placidez são as grandes qualidades do cantor que, entre faixas, se põe a tecer elogios a um festival capaz de abrir salas emblemáticas da cidade para a cultura e para as pessoas.
Fundir os ritmos da bossa nova ao indie-folk é obra que o músico já desempenha com destreza. A isso, junta um enorme à-vontade em palco e uma interação fenomenal com as pessoas. É como se, de repente, o São Jorge fosse o quarto de Øye e estivéssemos ali a contemplá-lo, com os cotovelos sobre a mesinha de cabeceira. Tudo isto com um ritmado sentido de humor, ao qual o público reage brilhantemente.
Para além de Erlend Øye e da plateia, uma outra estrela brilha no São Jorge: o flautista Victor Abrahamsson, numa noite em que a lei da gravidade não abona a seu favor. Caído o microfone três vezes consecutivas, Victor é alvo da compaixão portuguesa com palmas e vozes que repetem o seu nome em uníssono. A meio do concerto, a performance de Victor é já uma “private joke” entre os artistas e o público. Mais uma faixa e Victor dá lugar ao italiano Maurizio para alegrar a sala. O guitarrista inicia-se com “Grande Grande Grande”, a canção romântica pintada pelo italiano arranhado (mas nada mal para um norueguês) do vocalista. “Ti odio e poi ti amo, poi ti amo, poi ti odio e poi ti amo”, canta Øye. Mas o público parece amá-lo sem interrupções, incondicionalmente.
Braids na Casa do Alentejo
Enquanto, mesmo ao lado, o Ateneu Comercial de Lisboa está concorrido para ver os bracarenses peixe : avião, a Casa do Alentejo chega a erguer a placa de lotação esgotada desde os primeiros acordes dos Braids. As luzes sanguíneas no salão de festas não podiam condizer melhor com este rock chuviscado pela eletrónica e pelo dubstep (há quem os coloque na esfera do dream-pop, do art-rock ou, ainda, de ambos).
Há entrega e movimento na performance dos Braids, o que cria uma plateia atenta e respeitadora. Mas a forma introspetiva com que o trio atua perfila uma quebra na relação com a massa humana. Ao som pujante e translúcido da banda de Montreal, o público reage estático, ficando-se pelo movimento pendular dos pés.
Entre a voz, guitarra, baixo, teclado e bateria, os Braids (substitutos do norte-americano Autre Ne Veut no Mexefest) produzem um som que a crítica tem acompanhado favoravelmente, mas sem grande entusiasmo. É o que acontece neste concerto em Lisboa, que serviu, sobretudo, para mostrar as canções do álbum mais recente, “Flourish // Perish”. Missão cumprida.
Eles dizem Oh Land; nós dizemos Oh God!
Nos acordes finais do Vodafone Mexefest, subimos a escadaria da Estação do Rossio para dar de caras com um cenário típico de enchente em dia de greve de comboios. Ninguém esperaria que, às 23 horas de um frio considerável, a dinamarquesa Oh Land conseguisse arrastar uma multidão assim.
Se o público aguardava Oh Land em frenesim, foi fácil envolvê-lo. O cenário também ajuda: o iluminado castelo de São Jorge é pano de fundo para as faixas de “Wish Bone”, o mais recente álbum da intérprete dinamarquesa. Mas é “Son of a Gun”, do disco de 2011, o momento em que mais se dança. Como a própria sublinha, é preciso mexer para aquecer, portanto, nem de um lado, nem do outro, se perde tempo. E assim se constrói o núcleo desta performance: sem grandes esforços.
Entre a pop e a disco, Oh Land é sexy, mexe-se bem e descontrai. Mas é pobre. Do concerto, desenrola-se um misto de histerismo e liberdade ao ar livre, sobretudo para quem já tem os pés soltos ao cabo de umas cervejas. Mas para quem está a água, Oh Land não mata a sede.
Texto: Rute Barbedo